quarta-feira, fevereiro 10, 2010

100 Verde Rubros Anos - Capítulo I, Parte 4


Fase de jogo entre duas formações do ‘Santa Clara’ (Western Telegraph Company), no dealbar do século XX. Destaque para o numeroso público que assiste à partida.


Raízes Ancestrais
A classe dos marítimos, por razões profissionais e de local de habitação, era a que maior presença marcava entre os assistentes dos jogos que se disputavam no campo D. Carlos desde os finais do século XIX. Alguns desses jogos terão acontecido um pouco mais para leste, no denominado campo das Loucas. Eram jogos entre equipas de tripulações dos barcos estrangeiros que passavam pelo Funchal. E também entre as formações dos ingleses que trabalhavam na ‘Casa da Linha’, designação popular para a Western Telegraph Company, sediada no alto da Calçada de Santa Clara. Ou entre aquelas e estas, que apunham o nome ‘Madeira’ à sua designação, como já se viu. Com o decorrer dos tempos, os marítimos passaram de meros assistentes a jogadores. Se o campo D. Carlos não estava ocupado, organizavam jogos entre si, para matar o tempo. Era tudo fácil e simples – bastava sairem das casas que habitavam ali mesmo nas redondezas e desaguarem no campo. Começavam os primeiros pontapés na bola verdadeiramente madeirenses.

Negócio de "Chicago''
Primeiro madeirense proprietário de uma bola de futebol, João Nunes Viveiros, um comerciante marítimo conhecido por ‘Chicago’, vai desempenhar um papel importante na abertura da prática deste jogo aos naturais da ilha. Como qualquer comerciante que se preza, faz dessa propriedade um negócio – aluga a bola a 10 réis por cada hora de utilização. Mandada vir de Inglaterra ou adquirida, sem cautchou, junto da tripulação do Rhouma (iate inglês que a partir de 1895 passará anos seguidos pelo Funchal), não é seguro como foi esta bola parar às mãos de ‘Chicago’. Certo é que, em bom estado ou a carecer de ‘remendos’, foi com ela que se fizeram muitos dos primeiros jogos de futebol entre madeirenses. É também certo que no interior dessa bola foi preciso introduzir uma bexiga de animal, adquirida no Matadouro Municipal, para substituir o cautchou, fosse porque este não existia à partida, fosse porque se tinha estragado com o uso. Quando a bola do ‘Chicago’ ficou de todo inutilizada, já tinham sido feitas as fantásticas descobertas das bolas recheadas de trapos ou de bexiga amarrada com fio e metida dentro de uma meia. Não era a mesma coisa, mas era muito mais barato. Até aí, o negócio de João Nunes Viveiros correu muito bem.

Brincadeiras do "Candinho"
Cândido Fernandes Gouveia, o ‘Candinho’, será o principal dinamizador da fundação do clube dos marítimos. Mas por enquanto, interessa-nos apenas que ele é, tal como ‘Chicago’, um comerciante instalado na zona velha da cidade.Fruto da sua actividade, sofre forte influência dos contactos com as tripulações dos barcos que passam pelo nosso porto. Cultiva boas relações com os seus membros. E por isso pedem-lhe conselhos de diversa natureza. Um desses conselhos terá sido sobre a localização de um espaço amplo e plano, onde os marinheiros pudessem exercitar-se e realizar alguns ‘divertimentos ’ .Uma das tripulações com que Cândido Gouveia tem um relacionamento especial é precisamente ado Rhouma. E a ela terá indicado o campo de D. Carlos como a resposta ideal para a solicitação que lhe é feita – o tal espaço amplo e plano, para o tal ‘divertimento’. Que mais não era que o jogo do futebol.Mais tarde, Cândido Gouveia começou a desafiar a equipa da tripulação do iate Rhouma, para que disputasse encontros com grupos de futebol constituídos, sob a sua direcção, por madeirenses. Essas organizações vão ficar conhecidas, durante largos anos, como as ‘brincadeiras do Candinho’, designação que nos dá a ideia da forma como esses encontros futebolísticos eram encarados.

Jogam os Madeirenses
Andamos, mais ano menos ano, por volta de 1900. Agora é certo que essas ‘brincadeiras’ são jogos organizados propositadamente para equipas madeirenses. A bola destas partidas é propriedade de Cândido Gouveia, adquirida em Londres, a seu pedido, através de Harry Hinton. As equipas ainda não exibem qualquer indumentária distintiva – joga-se com os trajes com que se chega ao campo D. Carlos. Arregaçam-se calças e camisas, ficam os casacos à sombra das árvores e por cima dos bancos alidispostos. Não são poucos os que jogam descalços. O jogo é violento. Registam-se frequentes acidentes entre os participantes, que são socorridos nas imediações do recinto. Às mãos de D. Plácida moradora mesmo em frente ao campo, curavam-se entorses e contusões com massagens de ‘azeite doce’. Se doía mais para cima, D. Plácida socorria-se de ventosas e emplastros americanos. E, que conste, não lhe faltava trabalho.

Bola de Cabeça
Numa dessas partidas entre madeirenses, Henry Miles observa que, quando a bola era impelida parao ar, se formavam, no previsível local de queda, autênticos ‘cachos humanos’, num misto de empurrões e caneladas, a ver quem conseguia pontapear o esférico de novo. Conhecedor de alguns ‘segredos’ do jogo, Miles terá ensinado que a maneira mais rápida e eficaz para, naquelas circunstâncias, disputar a bola, era cabeceá-la.
Mas foi preciso convencer os jogadores de que o peso do esférico não seria, mesmo em retorno do seu voo, muito mais do que aquele que ele tinha junto ao solo. Esse receio foi vencido. Mas continuou-se a jogar aos repelões, um pouco às cegas, com a bola impelida quase sempre ao primeiro shoot, como se assim fosse possível chegar rapidamente ao goal do adversário e... escapar às pisadelas que o momentâneo domínio de bola inevitavelmente acarretava, pela chusma de adversários emesmo colegas de equipa que ansiavam pontapear o esférico. Joga-se assim, nestas ‘brincadeiras do Candinho’. As formações são constituídas por membros da classe comercial e outros elementos de categoria social assinalável.
A classe dos marítimos está cada vez mais desejosa de dispor de uma formação própria, onde pudessem alinhar os seus elementos mais dotados...

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